quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

À CONVERSA COM RUI MADEIRA




Cenaberta conversou com Rui Madeira, membro da direcção da Cena Lusófona e director da Companhia de Teatro de Braga. A entrevista agora publicada é uma lúcida abordagem ao papel das pessoas e das estruturas no seio da Cena; ao que somos, para onde e com quem queremos ir. Caminhando entre redes “de afectos e de imaterialidades”. E de algum oportunismo.
A Cena Lusófona viveu tempos difíceis, anos sem qualquer apoio oficial. Como compreender este quase-milagre da sobrevivência?
Mais do que sobreviver, nestes últimos três anos conseguimos a proeza de concretizar iniciativas, naturalmente condicionados. Mentiria se dissesse que a situação não nos afectou. Mas fizemos. Agora estamos num momento em que a Cena faz um esforço para retomar um percurso conforme as expectativas que foram criadas desde a sua formação, na esperança de que voltemos rapidamente a ter a relevância que esse trabalho e esse histórico merecem no panorama das artes cénicas da lusofonia.


Que sentido dar hoje ao trabalho da Cena?
Acho que devemos trabalhar no sentido de que a Cena seja não apenas um juntar, um agregar de pessoas, mas também um aglutinar de estruturas, para podermos responder melhor a eventuais maus momentos futuros. As dificuldades vividas nos últimos anos não têm a ver com problemas nossos, de projecto ou de pessoas, derivam da falta de perspectiva estratégica e política dos sucessivos governos; por comodidade podemos dizer: dos sucessivos governos portugueses.


De facto, a importância da Cena extravasa os limites geográficos de Portugal.
Embora seja um projecto que se iniciou aqui, os seus objectivos ultrapassam as fronteiras europeias, co-responsabilizam outros países e governos de Língua portuguesa. Neste aspecto eu acho que tem havido uma fraca análise dos governos da lusofonia em relação àquilo que a Cena potencia e pode ajudar, numa perspectiva mais alargada, na persecução de objectivos estratégicos que ultrapassam em muito a questão cultural.


Como articulas o trabalho da Companhia de Teatro de Braga com o da Cena Lusófona?
Todo o trabalho da Companhia tem sido enquadrado e tem sido assumido como um trabalho inserido no projecto Cena Lusófona. Com esta filosofia, nos últimos anos desenvolvemos uma série de iniciativas no Brasil, em vários Estados: “workshops”, oficinas sobre escrita com a Regina Guimarães, oficinas sobre a prática teatral. Temos levado espectáculos a São Paulo, à Bahia e a várias cidades do Estado; temos participado em alguns Festivais. Fomos a São Paulo, ao 1.º Festival Ibero-Americano, com um texto do Nelson Rodrigues, a “Doroteia”, e temos feito imensos espectáculos, imensas acções. Em Agosto (a entrevista foi realizada no final de Julho de 2009) irei a São Paulo, mais propriamente à cidade de São Vicente, na baía de Santos, fazer uma oficina sobre “A Castro”, de António Ferreira, destinada a actores que querem experimentar este trabalho. Tem sido desenvolvida uma importante acção no Brasil; ao mesmo tempo, nós temos recebido aqui companhias brasileiras.


No domínio da acção articulada da Companhia de Teatro de Braga com a Cena Lusófona, há ainda o actual estágio de três actores brasileiros no seio da Companhia.
Nós temos três elementos a trabalhar connosco, jovens actores brasileiros oriundos da Bahia. O trabalho de “As Bacantes” começou lá e teve como objectivo encontrar dois ou três jovens actores estagiários, numa base de acordo entre a Secretaria de Estado da Cultura da Bahia e a Perfeitura de Camaçari.
Feita a selecção, eles vieram, nós fizemos em Portugal uma outra oficina para o Coro de “As Bacantes”, juntámo-los, fizemos o espectáculo cá e voltámos a São Paulo. Em São Paulo fizemos uma outra oficina durante dez dias, seis horas por dia, para criar um coro para o espectáculo, com actrizes brasileiras.


Em São Paulo, o espectáculo foi apresentado onde?
Fizemos ensaios no espaço do TAPA, que é um parceiro da Cena lusófona há muitos anos. O Eduardo Tolentino, o director do TAPA, tem participado em muitas actividades da Cena Lusófona. Ele integra uma rede amiga, que eu entendo a Cena também como uma rede de afectos. Fizemos esses ensaios no espaço do TAPA e depois apresentámos o espectáculo “As Bacantes” no Teatro Oficina do José Celso, outro exemplo de relações afectivas.
Portanto, este mexer, numa base de projecto Cena, nós temo-lo mantido, naquilo que eu acho que cada uma das pessoas, cada um dos responsáveis do projecto devia manter.


Do que atrás disseste extrai-se que encaras como muito estreita, indissociável, a relação da Companhia de Teatro de Braga com a Cena Lusófona.
Nós pensamos que todo o trabalho desenvolvido pela Companhia com o Brasil ou com Moçambique, quer nas acções de formação, quer na apresentação dos espectáculos, deve e tem de ser enquadrado numa perspectiva de Cena Lusófona. Não faria sentido ser de outra maneira. Custa-me admitir que pessoas, ao longo dos anos recorrentemente chamadas pela Cena para fazerem acções de formação, ali e acolá, possam ir agora a esses mesmos sítios, ignorando a Cena Lusófona.
Custa-me também compreender que pessoas que foram convidadas pela Cena, que estiveram e participaram em acções da Cena, que conheceram este projecto, que sabiam quais eram os seus objectivos, quando catapultadas de repente para lugares de responsabilidade, se esqueceram de tudo, tentem apagar a Cena Lusófona e vão ao ponto de desenvolver projectos que sabem ter paternidade, autoria.


E quem são essas pessoas?
Acho que não interessa fulanizar. Sou crítico relativamente a quem andou ou anda pelo projecto Cena só quando há recursos. Estou a ser completamente sério, porque é exactamente isto que eu penso. Acho que um projecto desta natureza é também um projecto de imaterialidades, de sonhos, que só se concretiza quando as pessoas entenderem que podem juntar as responsabilidades estratégicas das suas estruturas com aquilo que é mais vasto. Talvez o trabalho da Companhia de Teatro de Braga no Brasil nunca se concretizasse se não houvesse Cena Lusófona.


O trabalho de intercâmbio da Companhia de Teatro de Braga com a lusofonia esgota-se no Brasil?
Hoje a companhia tem uma rede de contactos e de conhecimentos que nos levam infelizmente a não poder assumir muitas das propostas que nos chegam. De qualquer modo, vamos receber aqui, em Setembro, o Isaías Machava, de Moçambique, do Maputo, que vai dirigir o Teatro África, onde está sedeada a Companhia Nacional de Canto e Dança. Vem fazer um estágio de seis meses, fruto de uma relação que nós estimulamos com a companhia Nacional de Canto e Dança, e que levou a que o Frederico Bustorff esteja em Moçambique, desde Abril até Fevereiro do ano que vem, a fazer um documentário sobre os trinta anos de actividade da Companhia, ao mesmo tempo que desenvolve uma acção de formação para que essa estrutura tenha um departamento de imagem.


Essa vertente lusófona, africana, brasileira, essa valência que consideras estruturante para a Companhia de Teatro de Braga, “aprendeste-a” na Cena?
A experiência da Cena abriu-me claramente perspectivas no âmbito da lusofonia. Por isso eu falo da necessidade de abrir a Cena Lusófona não somente a pessoas mas também a estruturas, no sentido de responsabilizar mais os desempenhos. Nós sabemos que a Cena Lusófona, nos primeiros anos, foi entendida como mais uma instituição, vista de fora. Alguém que pretendia acolher projectos e distribuir apoios. E foi pouco entendida como verdadeiramente uma associação de pessoas que veiculam um objectivo, um sonho, um espaço de confronto…


... de confronto e de confluência.
Exacto, de confronto e de confluência de pessoas da área da criação artística teatral…


de pessoas e de estruturas.
Essa questão das estruturas ficou muito de fora. No momento em que a Cena Lusófona, por razões que a ultrapassam, viveu uma crise, de repente nós percebemos que afinal não éramos tantos assim. E se a Cena hoje se mantém deve-o à influência que essas pessoas tinham e têm em estruturas. Podia mais uma vez falar de nomes, mas basta referir isto: se não fossem algumas dessas estruturas talvez hoje não existíssemos. De facto, a Cena apoiou-se nos últimos anos em estruturas, através de pessoas ligadas à Universidade de Coimbra, a Companhias, empresas…


Usando um ditado popular quase parece que há males que vêm por bem.
Não direi isso. De qualquer modo, vou considerar este período difícil da Cena Lusófona, estes últimos três anos, como algo revelador e importante e profícuo. Para mim, para a estrutura que eu dirijo, toda a gente na companhia sabe o que é a Cena Lusófona. Na Companhia todos sabem que o trabalho que nós desenvolvemos no Brasil tem a ver com a Cena Lusófona.


O teu trabalho no Brasil tem sede muito em São Paulo e Bahia. Quais são aí os principais parceiros?
São vários. O meu amigo Sartini, que hoje dirige o Museu da Língua em São Paulo, a Creusa Borges, produtora e directora do Grupo Dragão Sete, as pessoas da Cooperativa Paulista de Teatro, o Eduardo Tolentino, do TAPA, o Fernando Calvozo, que dirige o Festival Ibero- Americano, muitos dos responsáveis culturais de cidades do Estado de São Paulo… Há uma geração de pessoas que trabalham junto da Secretaria de Estado da Cultura do Governo de São Paulo ou junto da Perfeitura que têm muito a ver com o nosso trabalho.


Muita gente, muito interlocutor…
Há uma rede de conhecimentos que passa por dentro quer do Governo de São Paulo, quer da Perfeitura, extremamente importante. O Márcio Meirelles, naquilo que nós na Bahia temos desenvolvido, tem enquadrado o intercâmbio dentro dos parâmetros pré-estabelecidos da política cultural do Estado. Há uma diferença entre o Márcio Meirelles Secretário da Cultura e o Márcio Meirelles director do Teatro Vila Velha. E ainda bem que é assim. Tudo quanto se faça apoiado pela Secretaria de Estado da Cultura da Bahia tem de ser determinado em concurso claro.


O que disseste pressupõe um relação continuada, ligação, rede. Pergunto, há a ideia de expandir essa malha?
Nós temos a ideia de fazer coisas com Angola e inserir isso obviamente dentro do espaço da Cena Lusófona. Estamos a trabalhar com algumas empresas que estão em Braga e que têm relações de trabalho e comerciais com Angola, no sentido de vermos o que podemos fazer. A questão de Moçambique…
Brevemente, eu e o António Augusto Barros iremos fazer uma reunião com membros do novo Governo saído das últimas eleições da Galiza. A Companhia de Teatro de Braga desenvolve um trabalho de características regulares com a Galiza, envolvendo directores de Companhias, actores galegos. A Galiza pode ser um valor acrescentado, pode desenvolver sinergias que envolvam a Cena Lusófona como parceiro.


Um movimento em espiral, que, a dada altura, pode arrastar outros protagonistas?
De facto, Portugal e Espanha, nós somos países da periferia da Europa. Talvez a Espanha não seja entendida assim, mas, se pensarmos na Galiza, percebemos melhor do que estamos a falar. Ao mesmo tempo, este canto ibérico tem relações profundíssimas com um vasto mundo americano, africano… o problema aqui é que nós não temos sustentação, uma política de apoio.


Ao contrário do que acontece com outros.
Não temos a noção da força e da importância que o Instituto Cervantes tem hoje no Brasil. Nos últimos dois, três anos, mais de oitenta delegações do Instituto Cervantes foram criadas no Brasil. Não avaliamos a força que as estruturas culturais francesas têm hoje em Moçambique, em Cabo Verde.
Nós não fazemos ideia, não fazemos ideia quando falamos de País, porque nós, elementos da Cena Lusófona, temos esse conhecimento do terreno, dos factos, sabemos como as coisas funcionam, sabemos a importância do “Goeth-Institut” na Bahia. Nós, País, não conseguimos imprimir uma dinâmica cultural estruturada. Fala-se da Galp, que tem umas plataformas na Baía de Santos, dos negócios com a Venezuela, mas o governo português não integra isso numa política cultural consentânea.








Rui Madeira (Santarém, 1955) é encenador e actor (teatro, cinema, televisão). Director da Companhia de Teatro de Braga e administrador executivo do Theatro Circo de Braga, é membro da direcção da Cena Lusófona e Docente, nas áreas do Corpo e da Expressão.
* entrevista publicada no cenaberta, 7 (em papel). Pode consultá-loaqui.

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